Baby do Brasil: “Acham o gospel cafona, mas vão ter que aturar”

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Em reportagem da Ig Turismo, Elza Soares, Baby do Brasil e Ademilde Fonseca falam de show em São Paulo. Baby falou sobre o preconceito em relação a seu novo estilo musical, o gospel, e contou que pretende gravar dois CDs, “um para Deus e outro ‘secular’. “Eu não me nego a ser tudo que sou”, disse. Confira reportagem:Elza Soares foi a primeira a chegar ao camarim do Sesc Vila Mariana. Espera a passagem de som acomodada numa cadeira da qual mal pode se mover, por causa de um torção no pé que afeta também sua coluna. “Fiquei meio paraplégica, se você quer saber. Um mês e meio de cadeira de rodas”, explica. Lamenta a morte de Johnny Alf e “os biombos que vão nos separando”. Enquanto Baby do Brasil não chega, diz não estranhar o fato de sua discípula ter se convertido em evangélica fervorosa. “Eu sou espírita. Respeito os outros e quero que respeitem meu lado. As pessoas têm direito de expressão”, afirma, o trovão de sempre guardado dentro da voz rouca.

Elza tem disco novo na manga, gravado em duo com o violonista João de Aquino. Desse trabalho mostrará à noite a “Juventude Transviada” de Luiz Melodia, entremeada com o blues “Cry Me a River”, de Arthur Hamilton, e o batuque “Lamento da Lavadeira”, de Monsueto Menezes. Ainda em 2010, planeja trazer à luz um disco de jazz, “bem Mississippi, coisas negroides mesmo, ‘Strange Fruit’, ‘Summertime’, ‘All the Way'”. Rotulada como sambista pela indústria fonográfica, Elza esteve sempre doida para alçar outros voos, e muitas vezes de fato os alçou. Não será diferente à noite, quando ela embasbacar a plateia cantando “Opinião”, de Zé Keti, sem microfone, nua com sua voz.

No camarim, discorre sobre a condição feminina: “Quando a mulher quer, e toma a frente, a coisa vai. A mulher não é aquela que fica atrás de um grande homem, eu acho essa história horrível”. Por falar nisso, uma enorme boca sorridente e uma roxíssima cabeleira índia irrompem de repente na pequena saleta. Baby (ex-Consuelo) do Brasil está na área: “Quando criança, eu tinha a mania de cantar rouco, mas achava esquisito. Foi quando ouvi Louis Armstrong e Elza Soares que entendi que aquilo não era defeito meu, era uma coisa que existia mesmo”. A menina que dançava, tinia e trincava nos Novos Baianos louva a professora: “Elza é cantora de explosão, eu também sou. Fiquei de olho desde o início, tive muita intimidade com ela sem conhecer pessoalmente”.

Evangélica, pastora (ou “popstora ninja”, como diz) e dona de uma igreja no Rio de Janeiro, Baby andou bastante afastada da música brasileira neste início de século. Não lança disco desde Exclusivo para Deus, de 2000, mas também tem novidade na manga. Idealiza dois discos de uma vez, um para Deus e outro “secular”. “Eu não me nego a ser tudo que sou”, resume. Não desconhece que a religiosidade a afastou do rebanho pop-rock-MPB: “Algumas pessoas acham o gospel cafona, chato, mas nós estamos chegando para tirar a caretice da religião. Vocês vão ter que aturar, porque eu fui arrebatada”, relampeja.

No camarim, reage rindo à pergunta sobre onde se escondeu a Baby endiabrada de outrora. “Não sei se endiabrada é a palavra. Mas você terá ela de novo. Doida eu sempre fui, e continuo sendo.” À noite, Baby provará por A mais B que o preconceito é mesmo uma maldição. Regendo feito maestrina a banda de Elza, cantando Deus ou Jackson do Pandeiro, Baby do Brasil ainda é uma das maiores cantoras brasileiras vivas. No palco, mostrará que está em excelente fase, com fogo comparável ao da antiga Baby “Todo Dia Era Dia de Índio” Consuelo. Endiabrada.

Do alto de seus 89 anos, Ademilde Fonseca é a última a chegar. Lépida, loura e fagueira, recebe as mesuras das cantoras que seguiram pelas estradas abertas por ela. “Ademilde é a nossa rainha”, é o que diz Elza da chamada “rainha do choro”, a inventora do choro cantado, a mulher para a qual se vestiram de versos clássicos como “Brasileirinho”, “Apanhei-Te Cavaquinho” e “O Que Vier Eu Traço” (todas mais tarde samba-rockeadas por Baby).

Ademilde parece 20 anos mais jovem do que é, mas avisa que as cordas vocais já não possuem aquela elasticidade de outros tempos. Diante dos fartos elogios, ela brinca: “Pode haver cantora melhor que eu, mas igual a mim não tem”. Elza se retira para passar o som, Baby pergunta a Ademilde quais foram suas influências vocais, ela cita Aracy de Almeida e Odette Amaral. Ademilde conta que também é evangélica e fala da vida musical hoje recolhida: “Apareço a cada vez que recebo um convite. Em casa, amanheço cantando e vou dormir cantando”. “O choro é o jazz brasileiro, e Ademilde ficou sendo a cantora dos músicos, de Waldir Azevedo, Jacob do Bandolim, Abel Silva”, derrama-se Baby, antes de sair, ela também, para ensaiar.

Ademilde segue conversando e narrando 89 anos de modéstia. “Eu era muito ingênua, cantava por cantar, porque gostava. Sou natural, não tive estudo nenhum. Nunca fiz curso de canto”, constata como quem se desculpa de alguma deficiência. Ali por perto, cantam em ensaio duas das legítimas herdeiras de sua estirpe. Dizem que o Brasil é um país de cantoras, mas perceber que essas três mulheres não são celebradas com o mesmo fervor com que se celebra uma Billie Holiday ou um Chico Buarque é mais esquisito que a voz rouca de Baby.

Pedro Alexandre Sanches

Foto: Luciano Trevisan

Fonte: Ig Música / Padom

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