O que aconteceu naquele Sábado Santo?

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sabado-santoDeus morreu em carne e o inferno estremeceu de medo.

Pena-bonita colocou duas moedas de cinco centavos em cima do balcão para suas compras destinadas ao Sábado Santo (o sábado da Semana Santa): presunto defumado, dois por cinco centavos. Na hierarquia descendente de alimentos para o Sábado Santo, presunto defumado se encontrava em último. No açougue do meu pai, os grandes presuntos defumados eram pendurados no centro da loja. Painéis coloridos eram trazidos pelos vendedores das companhias de carne como Armour, Hormel e Silverbow; mostravam variados temas: um pai cortando um presunto sentado à mesa no domingo de Páscoa, com sua esposa satisfeita e seus filhos ansiosos. Ao lado destes painéis, era possível encontrar pilhas dos presuntos menores e mais baratos, destinados a piqueniques (apesar de que presunto de piquenique não é exatamente presunto, mas o ombro do porco), os quais não tinham nem fotografias na embalagem, e muito menos as marcas. No Sábado Santo os clientes lotavam a loja, em resposta aos anúncios de vendas pintados no vidro da loja que dava para a Rua Central. Os clientes se dividiam entre a classe alta e a baixa, de acordo com o poder aquisitivo: os ricos compravam os presuntos defumados e com mel, enquanto os não tão ricos compravam os presuntos de piquenique sem nome.Pena-bonita era a única pessoa que eu me lembro que comprava presunto engordurado por fora, encorpado por dentro, mas defumado e, portanto, com um aroma de festa – no Sábado Santo. Ela era a única índia que eu conhecia por nome durante minha infância e juventude, apesar de eu ter crescido em um país de índios. Todos os sábados ela vinha à loja para fazer uma pequena compra: pés de porco, salsicha, queijo e fígado. Ela estava sempre sozinha. Usava sapatos e estava enrolada em um cobertor, mesmo em época de calor. As moedas que ela utilizava para as compras ficavam em uma bolsinha de couro pendurada em seu pescoço. Sua face era da cor e da textura dos sapatos mocassim em seus pés.

Índio era uma palavra quase mitológica para mim, cheia de nobreza e beleza, repleta de histórias e cerimônias sagradas. De alguma forma nunca me ocorreu que aquela índia vinha à nossa loja todos os sábados e comprava carnes simples que não condiziam com a sua nobreza. Enquanto ela fazia as compras conosco e com os outros vendedores da cidade seu marido, junto com sete ou oito índios corajosos, ficavam sentados em caixas de maçã atrás do Bar Pastime, bebendo e passando de mão em mão uma jarra de vinho Thunderbird. Diversas jarras, aliás. Enquanto eu fazia entregas de carnes e hambúrgueres aos restaurantes da rua central, eu passava por aquele local diversas vezes, todo o sábado, e observava as jarras vazias se acumulando. Tarde da noite, Bennie Odegaard, filho de um dos donos de bar e um pouco mais velho que eu, colocava os corajosos índios no caminhão de seu pai e os levava para o sul da cidade onde ficava a reserva indígena, próximo ao rio Stillwater e os deixava lá.
Não sei como Pena-bonita retornava para aquela reserva indígena. Acho que ela caminhava, carregando suas pequenas compras. No Sábado Santo ela carregava quatro presuntos defumados.
Eu nunca havia ouvido sobre um sábado que era designado como Santo. Era simplesmente sábado. Se, uma vez por ano, alguma precisão era necessária, era o “sábado antes da Páscoa”. Era um dos dias de trabalho mais pesados do ano. Logo cedo, eu carregava os cheirosos presuntos que vinham da Armour, em Spokane, da Hormel, em Missoula, da Silverbow, em Butte, e os organizava simetricamente em pirâmides. Já haviam sido anunciados durante toda a semana. Sábado era o clímax comercial da semana. A santidade era deixada de lado até o domingo. Sábado era dia de trabalho duro e de ganhar dinheiro. Era um dia onde a evidência do trabalho duro e sua conseqüência – o dinheiro – se tornava publicamente aparente. A evidência foi especialmente clara naquele sábado em particular, quando vendemos centenas de presuntos para cristãos e quatro presuntos para uma índia e um carro cheio de índios bêbados.
O sábado entre a sexta-feira santa e a Páscoa era um dos dias de trabalho mais difíceis, ninguém pensava em santidade. Cresci em uma casa religiosa que acreditava com devoção nos benefícios salvadores da morte de Jesus e na vida gloriosa da ressurreição. Mas entre esses dois eventos da fé, trabalhávamos durante um longo e lucrativo dia. De alguma forma, eu estaria muito surpreso e incrédulo, se soubesse que, na mesma cidade onde eu trabalhava duramente, em todos os sábados que não eram santos, existissem pessoas além dos índios que não trabalhavam de forma nenhuma, mas lembravam do desespero de um mundo desapontado em todas as suas esperanças, penetrando em um mundo vazio da morte através do deliberado esvaziamento da ilusão própria, indulgência e importância. Em vigília pela Páscoa. Assistindo o nascer do dia.
Algo estranho acontece na terra hoje, um grande silêncio e paralisação. Toda a terra está em silêncio, pois o Rei está adormecido. A terra estremeceu e está paralisada porque Deus adormeceu em carne e levantou todos os que dormem, desde a fundação do mundo. Deus morreu em carne e o inferno estremeceu de medo. Ele saiu em busca de nossos primeiros pais, como em busca de uma ovelha perdida. Desejando muito visitar a todos que vivem na escuridão e na sombra da morte, Ele foi libertar da tristeza os cativos Adão e Eva, Ele que é tanto Deus como filho de Eva. Deus se aproximou deles carregando uma cruz, a arma que lhe deu a vitória. Ao enxergar Adão, o primeiro homem que Ele criou, aterrorizado gritou para todos: “Que Deus esteja com todos vocês”. Cristo lhe respondeu: “E com o seu espírito”. Ele o tomou pela mão e o levantou dizendo: “Acorde, você que dorme e levante-se dos mortos, e Cristo lhe dará a luz”. A leitura para o Sábado Santo é a liturgia das horas.
Interpretei o significado do mundo e das pessoas ao meu redor em termos de trabalhar nos sábados, mais do que qualquer coisa que eu havia dito ou cantado na sexta e no domingo. O que me diziam naqueles anos (e não tenho razão para duvidar que ouvi a verdade), o que eu absorvi em meus ossos foi um ritmo litúrgico em que o clímax era atingido em um dia normal e humano de trabalho, cujos resultados eram aproveitados na Páscoa.
Aquelas suposições promoviam a interpretação social do mundo à minha volta: sábado era um dia para o trabalho duro e para mostrar os resultados, ou seja, o dinheiro. Se alguém aparentasse não trabalhar ou gastar no sábado, havia algo errado, catastroficamente errado. Os índios, demonstrando ressaca da festa de Páscoa e seus presuntos, eram a mais proeminente exibição.
Era uma visão da vida formatada pelo “Evangelho de acordo com os Estados Unidos da América”. As recompensas eram óbvias e eu gostava delas. Ainda gosto. Trabalho duro é recompensado. Aprendi muitas coisas naqueles anos, coisas que nunca esquecerei. Ao mesmo tempo, havia uma grande omissão que colocava perigosamente em risco todas as outras verdades: a omissão da parte santa. A recusa de permanecer em silêncio. Evitar obsessivamente o vazio. A negação de qualquer experiência e qualquer pessoa que pudesse sugerir algum tipo de miséria.
Era muito mais do que a ignorância anual no Sábado Santo; era algo alimentado religiosamente, arrogância semanal. A Sexta-feira Santa não era apenas a ponte entre a crucificação e a ressurreição da Páscoa através deste dia cheio de energia, lucros e recompensas, mas todas as verdades do Evangelho eram colocadas da mesma forma como introduções ou conclusões para a ação humana que demonstrava nosso poder e nossa virtude todas as semanas do ano. Deus era o pano de fundo para os nossos compromissos e ocupações. Todas as verdades do Evangelho eram mantidas intactas e toda a energia humana era admirável, mas os ritmos estavam errados, as proporções tremendamente distorcidas. Desolação, e com a companhia do desolado, tanto os semitas do primeiro século como os índios do século vinte, varriam tudo de suas consciências.
Mas chegou um ponto em que eu estava convencido de que era criticamente importante que prestasse mais atenção no que Deus faz do que naquilo que eu faço. Encontrar diariamente, semanalmente, anualmente, ritmos que trouxessem este alerta aos meus ossos. Sábado Santo, para começar. E então, tempo para visitar pessoas em desespero, aprender seus nomes e aguardar pela ressurreição. Está agora mergulhada em minhas memórias esta grande ironia: aqueles sete ou oito índios bêbados, com as suas Thunderbirds vazias no beco atrás do Bar Pastime, nos sábados à tarde, enquanto os cristãos escandinavos trabalhavam diligentemente até tarde da noite, desatentos à santidade do dia. Os índios estavam em desespero – desespero religioso, algo muito parecido com o desespero do Sábado Santo narrado nos Evangelhos. Seu modo de vida havia chegado a nada; o único búfalo que lhes restara era aquele desenhado nas moedas de cinco centavos, duas destas moedas que haviam sido pagas pela índia para comprar os presuntos. O território sagrado de suas vidas estava perdido e, miseráveis como estavam, anestesiavam seu desespero com a bebida, enterrando suas visões mortas e seus sonhos no beco atrás do Bar Pastime, ignorantes da existência de Deus, que trabalhava em seu vazio.

por Eugene Peterson
www.padom.com

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