Moradora da casa de Eloa nunca viu o rosto da adolescente

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A imagem desesperada da adolescente Eloa Cristina Pimentel, 15 anos, protagonista do maior caso de cárcere privado no País – que amanhã completa dez meses – que morreu após ficar mais de 100 horas sob a mira do revólver do ex-namorado, o auxiliar de produção Lindemberg Fernandes Alves, 22, ainda é muito viva na janela da cozinha do apartamento 24, no bloco de mesmo número da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano), no Jardim Santo André, em Santo André. Ver pela primeira vez, de tão perto, o local do crime que chocou o País no ano passado faz o coração bater mais forte.A energia do local incomodaria boa parte da população brasileira, que acompanhou aflita, pela televisão, o desfecho trágico do caso. Mas não incomoda justamente quem hoje mora no imóvel: a dona de casa Daniela Cristina de Souza, 25, que vive no local com o marido e o filho de 6 anos desde 5 de março. Ela afirma, sem medo de parecer estranho, que sequer sabe como é a imagem de Eloa. “Não sei se é morena, loira, ruiva. Nunca vi o rosto dela. Só sei de o pessoal comentar.” E disse que nem pretende ver.
A aparente alienação esconde o fato de que as duas têm, sim, uma ligação muito forte, por mais que nunca tenham se encontrado: a morte rondou, ao mesmo tempo, a vida de Daniela e Eloa. Um dia antes de Lindemberg invadir a sala da adolescente, a dona de casa viveu um drama pessoal, a menos de um quilômetro do conjunto habitacional. “Vi a morte de perto. Naquele dia, meu barraco de dois cômodos foi soterrado e perdi o pouco que tinha. Só o quarto, onde estávamos eu, meu marido e meu filho, ficou de pé. Deus nos salvou naquele momento”, lembrou, emocionada, a evangélica Daniela.
Após passar a primeira noite na casa de parentes, a família de Daniela foi levada para um alojamento em uma creche desativada, também próxima ao local do crime. A preocupação com o filho e sobre como seria o futuro a partir daquele momento fez com que ela não desse atenção para o epicentro da principal notícia policial do ano. “Eu via helicópteros, ouvia pessoas falando, mas vivia a minha tragédia. E lá não tinha televisão”, justificou. No dia do desfecho, ela acompanhava uma palestra em uma escola – exigência do programa Bolsa Família, que recebia à época – que fica na mesma esquina do prédio. “Ouvi as pessoas falando que a menina tinha sido baleada. Como mãe, fiquei muito triste”, disse.

Vizinhos ainda tentam se livrar da tragédia
Daniela sabe que, desde o dia em que entrou no apartamento 24, não seria uma moradora comum. Apesar de dizer que foi acolhida pelos vizinhos, reconhece que ainda há distanciamento dos colegas de bloco, que não escondem que tentam o impossível: apagar da memória a história trágica que levou o prédio para noticiários do Brasil e do mundo.
“Muitos só conversam comigo da porta da minha casa para fora. Eles ainda não se sentem confortáveis em entrar. Mas eu consigo entender, porque eles conviveram muito tempo com a família da Eloa”, disse Daniela.
Se os vizinhos são amáveis com a família de Daniela, são hostis com quem vem de fora. A reportagem sentiu os olhares desconfiados dos moradores, que não disfarçam a antipatia pela imprensa, e teve de se explicar para uma das moradoras. “Aqui ninguém quer falar sobre isso”, falou a colega de prédio de Daniela, para depois revelar: “A gente tenta esquecer, mas é difícil. O bom é que a paz voltou.”
E eles tentam mesmo dar um ar de tranquilidade ao condomínio. Na escadaria, há diversos vasos com a plaquetinha ‘Aqui mora gente feliz”. Pena que o ambiente, ainda sob a lembrança do episódio, não transmita isso.
Mesmo com toda esta carga, Daniela não esconde a alegria de estar em um local mais seguro do que o antigo barraco. “Isso aqui é um paraíso para mim.” Cinco meses depois de ir para o alojamento, apenas com um colchão rasgado – que ela levou para o apartamento – veio a notícia que ela mais aguardava: a possibilidade de conseguir um teto. “Um funcionário da CDHU nos chamou e disse que tinha uma proposta, mas a gente poderia recusar. Ele disse que a gente poderia ficar com o apartamento que era a família da Eloa. A gente aceitou na hora.”
Mesmo sem ter a imagem da cena do crime, mais uma ironia do destino: o sofá de Daniela está exatamente no mesmo lugar em que estava o da adolescente, sujo de sangue, por conta do disparo de Lindemberg. “Eu não sabia, mas não tem problema.” Nem mesmo soube dos tiros na parede. Da lembrança direta do apartamento em que vivia Eloa, ficaram a cor da parede e o piso frio. A CDHU reformou o imóvel antes de entregá-lo à famíla.
O problema, segundo Daniela, é a dificuldade para manter em dia a prestação de R$ 77 do imóvel, atrasada desde junho. A renda familiar não ultrapassa R$ 700. “A gente fica apertado, mas com ajuda da família, vai conseguindo.”
Pixações na garagem fazem alusão ao fato
Ela pensou bastante antes de responder. Mas a afirmação veio: “Eu perdoaria o Lindemberg, assim como fez a mãe da menina.” Mas Daniela se coloca no lugar da mãe de Eloa, Ana Cristina Pimentel. “Consigo imaginar a tristeza dela, porque também tenho um filho que é a minha vida. Mesmo sem conhecer, eu rezo muito pela Eloa”, disse. A dona de casa afirma que nunca se impressionou pelo fato de na sala do imóvel ter sido cometido um crime. “Como eu só tenho na mente a imagem do meu drama, nunca me preocupei com isso.”
A cena não está na mente, mas ela não consegue entrar no edifício do Jardim Santo André sem ver as pichações na garagem do prédio, que fazem alusão direta ao episódio. Uma delas diz: “Eloa, força, Deus istá (sic) com você.” Em um muro, a frase que resume o sentimento de muita gente que acompanhou o fato: “Quem ama não mata.”
Mas ela consegue se manter distante do episódio. “Quero ter uma vida normal aqui.” Nem mesmo o fato de ter ficado uma semana sem eletricidade, assim que mudou, fez com que ficasse com medo. “Não teve problema. Tenho mais medo do vivo do que dos mortos.”
Apesar de tentar se manter distante do assunto, o que tem sido cada vez mais difícil, ela diz que evita falar com o filho. “Outro dia, ele perguntou se a gente morava na mesma casa da menina que morreu. Aí eu disse que ela estava com o Papai do Céu e mudei a conversa. Não quero que ele fique impressionado”.
* Em respeito à família da adolescente e aos que ocupam hoje o imóvel, não publicaremos imagem de Eloa.
dgabc/padom

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