Jacalyn Duffin: “Eu sou ateia, mas acredito em milagres”

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A canadense Jacalyn Duffin é uma ateia especialista em milagres. Em 2008, a hematologista e historiadora lançou Milagres médicos: doutores, santos e cura no mundo moderno, livro não-publicado no Brasil, onde analisa 1.400 milagres médicos usados em canonizações de 1588 a 1999. Ela se apaixonou pelo tema na década de 1980, quando foi convidada a participar do processo de canonização de Marie-Marguerite d’Youville, a primeira santa nascida no Canadá. Segundo ela, o Brasil somente tem dois santos, Madre Paulina e Frei Galvão, porque não teve, por muitos séculos, um sistema médico ideal. “O Vaticano busca sempre o melhor para atestar que a pessoa agraciada realmente tentou de tudo antes de apelar para ser curada”, afirma. Segundo Jacalyn, a Igreja pensa assim porque considera a medicina como uma manifestação de deus na Terra. Para ela, o rigor do Vaticano no processo de canonização acaba atrapalhando países pobres e em desenvolvimento, incluindo o Brasil. “Reunir a documentação e apoiar a causa de alguém à santidade custa caro”, diz. “Os países que são ricos, poderosos ou geograficamente próximos do Vaticano naturalmente têm mais santos e prioridade na fila de canonização.”

ÉPOCA – Como você se interessou por milagres?
Jacalyn Duffin – Meu primeiro contato com um milagre aconteceu há 30 anos, quando fui contratada por uma família para analisar tecidos de medula óssea de uma paciente. Eu não fui informada sobre nada do caso. Ao ver o material, notei que ele tinha oito anos e percebi que aquela pessoa tinha o pior tipo possível de leucemia. Na hora, assumi que a mulher estava morta. E pensei que a família estava me pagando para eu diagnosticar o problema e ela processar o médico responsável. Por um ano e meio, recebia a cada mês uma amostra diferente do tecido. Aos poucos, notei que o problema estava regredindo. Até receber a última amostra e perceber que a medula óssea estava normal. Era inexplicável. Para minha surpresa, a paciente estava viva e me informou que fui recrutada para corroborar evidências de um processo de canonização. Ela me explicou que foi curada porque rezou para a beata Marie-Marguerite d’Youville. Isso me fez ficar obcecada com o tema, porque sempre fui ateia.

ÉPOCA – E o que fez você começar a pesquisar sobre o assunto?

Jacalyn – A mulher agraciada pediu para eu ir ao Vaticano e depor sobre o seu caso. Lá, fui sabatinada por uma comissão de médicos. Eles fizeram as pesquisas mais pertinentes e complicadas o possível. O Vaticano tem um rigor científico incrível. Durante minha pesquisa, notei que 97% de todos os milagres de 1588 a 1999 eram médicos. Eles dão preferência a milagres médicos porque, em tese, são mais práticos de serem comprovados. É mais fácil apresentar uma cura inexplicável do que explicar uma multiplicação de peixes. Curiosa, eu decidi investigar o quão difícil era reconhecer uma cura milagrosa no decorrer da história. E descobri que a Igreja sempre foi exigente.

ÉPOCA – O Vaticano realmente se interessa na medicina?
Jacalyn – 
Sim, e muito. O Vaticano é rigoroso ao extremo. Ele exige que o melhor tratamento médico seja dado em todos os casos de curas. E recomenda que os católicos tentem ao máximo melhorar porque considera a medicina uma manifestação do trabalho de deus na Terra. Quase toda pessoa que foi curada por um milagre teve acesso ao melhor tratamento possível. Muitos, por exemplo, operaram e fizeram quimioterapia. E somente se curaram após pedirem ajuda a um candidato a beato ou santo. Eu li vários testemunhos de médicos que não sabiam explicar como alguns pacientes se curaram do dia para a noite. Depois de estudar tanto sobre o assunto, fiquei numa posição estranha. Eu sou ateia, mas acredito em milagres. A ciência não tem como explicar certas coisas.

ÉPOCA – Como você define um milagre?
Jacalyn –
 Segundo a Igreja, somente deus pode fazer milagres. Se você apela a um candidato à santidade para ser agraciado e consegue ser atendido, isso é uma prova que ele está com deus e intercedeu em seu nome. O milagre não é simplesmente um acontecimento maravilhoso para quem foi curado. É a evidência máxima das virtudes do candidato à santidade.

ÉPOCA – A canonização é uma arma política do Vaticano?
Jacalyn – 
Sim. Isso ficou nítido com o papado de João Paulo II, que passou a canonizar com o objetivo de agradar países onde a Igreja estava em decadência. A canonização também pode ser usada como um pedido de desculpas. Os Estados Unidos e Canadá, por exemplo, vem tendo uma série de casos de crianças abusadas por padres. Há duas semanas, a Igreja reconheceu santos para ambos. O Papa também pode canonizar um santo de um país específico pouco antes de visitá-lo oficialmente, ou fazer a cerimônia nele mesmo. Isso aconteceu com o Brasil em 2007, quando o Frei Galvão foi canonizado em São Paulo por Bento XVI. Ele morreu há séculos. Por que o reconhecimento veio naquele momento? Não foi coincidência.

ÉPOCA – O que faz um país ter mais santos que outros?
Jacalyn – 
Os países que são ricos, poderosos ou geograficamente próximos do Vaticano naturalmente têm mais santos e prioridade na fila de canonização. E não podemos ignorar os fatores históricos. No século 17, todos os santos eram da Itália, Espanha e França. Para a Igreja, o mundo era pequeno. Viajava-se com dificuldade e a comunicação era tão complicada quanto. Com o tempo, países do norte europeu começaram a ganhar seus santos. Colônias como o Canadá, meu país, também. Nós ganhamos alguns santos que eram europeus, mas viveram um bom tempo aqui e por isso são vistos como canadenses.

Transformar seu herói local num santo exige muito dinheiro e tempo. É preciso pagar especialistas para embasar a tese, coletar informações e capazes de fazer lobby pelo candidato no próprio Vaticano. Ou seja, toda causa precisa ter um representante em Roma. São coisas que potências têm mais condições de fazer. Uma saída para os países pobres, em termos de financiamento, é que todo processo de canonização tem uma conexão forte com o povo local, que pode estimular a causa e doar em prol dela. Ordens religiosas também ajudam. Os jesuítas e franciscanos têm dinheiro para auxiliar este tipo de empreitada.

ÉPOCA – Por que o Brasil, a maior nação católica do mundo, tem poucos santos?
Jacalyn – 
O Brasil foi um país relativamente pobre durante muitos séculos. Por isso, muitas pessoas não tinham acesso aos melhores tratamentos médicos da época. Assim como não tinham recursos para pagar os melhores profissionais para examinar as pessoas agraciadas e atestar que houve um milagre. A Igreja exige uma série de documentos sobre a vida do candidato e seus milagres. Toda essa informação precisa ser coletada, transformada num dossiê e entregue ao Vaticano. O processo de canonização é trabalhoso, consome muito tempo e custa caro. Por muito tempo, o Brasil se viu em desvantagem por conta disso. Não sozinho. Muitos países pobres católicos, que eram ou são nações em desenvolvimento, têm poucos ou nenhum santo. O Brasil está crescendo de uns anos para cá. Não é um acidente que vocês estão começando a ganhar santos agora. O país não tinha as mesmas condições há 300 ou 400 anos, mesmo com candidatos brasileiros notáveis que viveram vidas exemplares. De certa maneira, o processo de canonização descrimina nações em desenvolvimento.

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