Igrejas fazem crítica à economia

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Campanha lançada hoje por grupos religiosos condena modelo econômico

A Campanha da Fraternidade de 2010 coloca a partir de hoje a ética cristã em guerra com o espírito do capitalismo. Contando neste ano com o reforço de cinco igrejas além da Católica, a mobilização tem como alvo o modelo econômico vigente e como mote o versículo de Mateus segundo o qual não se pode servir a Deus e ao dinheiro ao mesmo tempo. Na mira de bispos, pastores e reverendos figuram inimigos como a ânsia por lucro, o agronegócio, o capital especulativo, o consumismo e o sistema financeiro internacional.

Pela terceira vez na história, a campanha não é promovida apenas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o órgão máximo da Igreja Católica no país. Como já havia ocorrido em 2000 e 2005, tem um caráter ecumênico. A organização passou para as mãos do Conselho Nacional das Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), que além dos católicos abrange os membros da Igreja Cristã Reformada, da Igreja Anglicana, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, da Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia e da Igreja Presbiteriana Unida.

– A campanha ecumênica é um testemunho de que as igrejas podem trabalhar em conjunto pelo bem comum, passando por cima das diferenças – diz o reverendo anglicano Luiz Alberto Barbosa, secretário-geral do Conic.

Responsável por comandar a campanha deste ano, ele reconhece seu caráter utópico. O objetivo é substituir o modelo econômico baseado no lucro por um outro, voltado para o bem-estar das pessoas. Em lugar dos bancos, da globalização, do agronegócio e da movimentação de capitais, entram em cena cooperativas, redes solidárias, agricultura familiar e iniciativas de microcrédito. Barbosa diz que não se trata de uma crítica às políticas do governo:

– A crítica é ao modelo que coloca o lucro acima do ser humano.

Uma análise de documentos e materiais da Campanha da Fraternidade deste ano revela uma sintonia com o discurso adotado por entidades como o Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ou eventos como Fórum Social Mundial (FSM). Barbosa reconhece a conexão. Observa que sacerdotes estiveram na origem da fundação do Partido dos Trabalhadores e que as comunidades eclesiais de base estão em contato com movimentos, como o dos sem-terra.

Católico faz restrição

Repleta de pontos de vistas polêmicos, a campanha foi recebida com ressalvas pela Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas de Porto Alegre. O presidente, José Antônio Celia, compartilha da ideia de que a economia tem de estar a serviço do homem e se junta à crítica à ganância e ao individualismo. Mas faz restrições a alguns pontos, como a demonização do lucro, o ataque ao agronegócio e à globalização.

– O Brasil não pode prescindir do agronegócio, como não pode prescindir da agricultura familiar – diz.

O secretário-geral do Conic, garante que a Campanha da Fraternidade tem também um caráter interno. Segundo ele, as igrejas não esqueceram de seu telhado de vidro de práticas capitalistas:

– Estamos dando um puxão de orelha em nós mesmos.

Voz do agronegócio, Marcus Vinícius Pratini de Moraes, ex-ministro da Agricultura, faz um ataque mais direto à reforma agrária como melhor antídoto contra a fome no Brasil.

– A reforma agrária nada tem a ver com alimento para o povo, é uma reforma política com outros interesses – critica.

Depois do auge da crise financeira, até cenários consagrados de defesa do livre mercado mudaram de discurso, se aproximando da ideia de reformulação. Foi o caso do Fórum Econômico Mundial realizado anualmente em Davos (Suíça), tanto na edição de 2009 quanto de 2010.

O ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero considera a temática da campanha oportuna:

– Acredito que possa desencadear reflexão. Enquanto tudo ia bem, o fundamentalismo do mercado era correto. É bom aproveitar o momento para mostrar que é necessário ter uma economia diferente.

“Não podemos servir a Deus e ao dinheiro”

ENTREVISTA | José Mário Stroeher, Bispo de Rio Grande

No ano em que contou com o reforço de outras igrejas além da Católica, a Campanha da Fraternidade elegeu adversários de peso: o capital especulativo, o lucro e o sistema financeiro internacional. Na entrevista a seguir, José Mário Stroeher, presidente regional da CNBB, explica o espírito da campanha:

Zero Hora – Qual é o objetivo da Campanha da Fraternidade?

José Mário Stroeher – O tema é a economia e a vida. A economia está muito organizada em torno do capital. Ainda estamos dentro da crise de 2008, e os bancos internacionais não estão aceitando regulamentação. O capital não quer ter normas, quer imperar. O capital é o grande ídolo, mas os cristãos dizem: não podemos servir a Deus e ao dinheiro. O dinheiro escraviza, amortece os valores.

ZH – Qual é o modelo proposto como alternativa pela campanha?

Stroeher – A proposta é que o sistema financeiro deve ser regulamentado, para que não vivamos com um dinheiro virtual, que vive à base de juros. Temos de ter regras para esse capital não ficar girando pelo mundo, buscando o lugar que remunera mais. Temos um sistema injusto, altamente concentrador de renda, que produz miséria. Para fazer frente a isso, precisamos qualificar a mão de obra, ter boas escolas, criar redes de economia solidária. Fala-se muito no agronegócio, mas a maioria dos alimentos, o feijão nosso de cada dia, vem dos pequenos agricultores.

ZH – Qual é o papel do consumismo na campanha?

Stroeher – Os bens, as roupas, o prazer, as drogas, tudo está a serviço do consumo, são instrumentos do dinheiro, para concentrar ainda mais o dinheiro. O consumismo é o homem tornar-se um predador. É depredar o ambiente, usar demais. Pregamos a sobriedade. Enquanto um tem demais, o outro tem fome. O consumismo leva ao desperdício.

ZH – O atual modelo econômico se alimenta do consumismo?

Stroeher – Sim. E ele alimenta o consumismo. É um círculo vicioso. Só se valoriza quem tem, e não quem é. A igreja é contra achar que a felicidade está em possuir bens. Porque a pessoa nunca fica satisfeita. Por que surge a droga, o crack? Porque só se está feliz quando se suga o máximo.

ZH – Por que a campanha faz uma crítica ao lucro?

Stroeher – Temos de pensar primeiro nas pessoas, na dignidade humana. Os cristãos não são marxistas, mas aprendemos com Marx que depois da dignidade da pessoa, temos de ser a favor do trabalho, que deve vir antes do lucro. Não somos contra o lucro, mas tem de ser um lucro que não explore. ?

Zero Hora / Padom

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