Haiti, Deus está por todo o lado e o vudu de Alexi também

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“Não vais revirar os olhos como costumas fazer para os turistas estrangeiros?”, pergunta o técnico de mecânica, Louis Domond, de 38 anos, a Maxime Alexi, ougan do vudu que pratica o culto em plena Cité du Soleil, a zona mais perigosa da capital do Haiti, onde a polícia diz que habita a maior parte dos autores de pilhagens e saques de Port-au-Prince, assim como os cerca de “4000 bandidos” que fugiram da prisão no centro da cidade. “Onde é que estão os tambores?”, ironiza Domon.O ougan, o título correspondente a um padre na religião católica, ou a um pastor na fé protestante, abre um largo sorriso, onde brilham dois dentes de ouro. Os olhos raiados de sangue têm uma intensidade poderosa. Depois de alguma insistência e dez dólares na mão, Alexi, de 43 anos, leva-nos por um pequeno labirinto, entre muros de casas semidestruídas, até ao cubículo onde agora recebe os seguidores da seita. É no meio de imagens místicas, pintadas nas paredes da sala, que confessa precisar de ajuda, como todos os haitianos: as forças do vudu que domina não foram suficientes para evitar que as suas duas habitações fossem abaixo com o terramoto de 12 de Janeiro.
Segundo os números oficiais, o Haiti é um país onde predomina a igreja católica, logo seguida dos credos protestante e evangélico. Mas, apesar de quase todos o negarem, muitos destes fiéis de outros credos praticam vudu. É uma questão cultural, “o mistério do vudu faz parte das tradições deste país, está por todo o lado, como Deus”, diz-nos um italiano que vive há alguns anos no Haiti. O nosso guia nesta expedição garante-nos que nunca fez vudu, apenas vai “a uma loja maçónica, onde também há segredos”.
“Não tenho nada para viver”, diz o ougan no crioulo falado pela maioria dos haitianos, traduzido para francês pelo nosso guia. “Se tu puderes arranjar qualquer ajuda para todos nós, eu agradeço.” Sobre a razão do terramoto, se o vudu consegue explicar de alguma forma o que sucedeu, Maxime Alexi diz que “as forças misteriosas podem proteger” mas não evitar o que está escrito que vai suceder. Tenta apoiar como pode os vizinhos e amigos próximos. Pede de novo ajuda e que a sua mensagem seja transmitida para Portugal e para o mundo. Espera que as Nações Unidas e as tropas dos Estados Unidos possam resolver a situação no Haiti, reconstruir a capital e o país, mas não quer dar mais qualquer opinião sobre a matéria. “Não sabe o suficiente sobre o assunto”, explica Louis Domond. Ainda assim, acredita que vieram para ajudar os “pobres haitianos”.
Perguntamos se pode explicar em palavras simples o que é o vudu. Responde: “Somos nós, é a cultura deste país, dos haitianos, a palavra é nossa, eu mesmo trabalho no sistema vudu, faço tratamentos e coisas misteriosas, para o bem das pessoas. Se alguém te quiser fazer mal, posso proteger-te.” Não há razão para ter medo do vudu, garante. “Quem tem medo é gente que não acredita, que acredita em Deus, noutras coisas, mas não no vudu. E é tudo.” Compreende que haja quem tenha medo. “Há pessoas que o utilizam mal, que pensam que pode provocar o mal, mas estão erradas.” O vudu, garante Alexi, é como os outros cultos: “O evangelista, o católico, o Jeová, todas as religiões juntas podem ajudar o Haiti a sair da situação em que nos encontramos.”
O padre católico Pierre Présumé, de 45 anos, também cultiva o ecumenismo, mas sem exageros. Na igreja de Nôtre Dame de Lourdes, um enorme pré-fabricado, telhado de zinco, que ficou de pé na Cité Militaire, onde está instalado um campo de desalojados, afirma que Deus nada teve a ver com o desastre natural que ocorreu no Haiti. “O Senhor não é capaz de fazer o mal. Os pecadores pecam e Deus não é responsável por isso. Os homens têm feito mal ao ambiente, é preciso mudar, deixar de fazer o mal contra o nosso ambiente, isso também é um pecado contra Deus e contra os nossos irmãos”, exclama. É isso mesmo que prega nas missas dominicais e diárias, a que não vão agora muitos mais fiéis do que iam antes do terramoto. “Deus é esperança”, eis a mensagem primordial. “Deus não castiga, é bom, é amor ao próximo”, logo de seguida.
Présumé diz que o terramoto é a prova de que as pessoas não se devem ligar “em excesso” a bens materiais, o que dura e sobrevive é a fé. “Vêem como em apenas um minuto as pessoas podem perder tudo o que têm, todos os bens materiais?” – pergunta. “Isto foi provado pelo terramoto, a vida é um dom de Deus.” A mensagem de socorro dirigida à comunidade internacional também não fica guardada: “A igreja católica e os fiéis precisam de ajuda, naturalmente. Pode testemunhar que as paredes deste local de culto estão a precisar de reparação urgente.” Tudo é urgente, aliás. “São os haitianos que mais precisam e é por eles e para eles que dirijo esta mensagem.”
O padre Pierre não pede nada para si próprio. Bem ao contrário do irmão Fritz Milfort Brisson, da igreja adventista do bairro Solidarité, ou do baptista Jean Wisler, com quem falamos em conjunto. As igrejas onde prestavam culto foram abaixo com o terramoto. Agora ambos levam “a casa ao ombro”, como dizem, mostrando as mochilas pousadas ao lado das cadeiras em que sentam. Brisson e Wisler perguntam se os jornalistas podem fazer “quelque chose” para os tirar do país, levá-los e às suas famílias para longe do Haiti. “Para Portugal, será possível?” – pergunta Brisson.
Os pedidos são prosaicos: “Precisamos de coisas como comida, água, mas também tão comuns como sabão ou pasta de dentes, os bens mais elementares, não temos nada, meu amigo.” Wisler informa que também é correspondente no Haiti de uma rádio de Nova Iorque, a Radio Panou, que transmite em 9.47 FM. Não diferem muito no discurso, mas o adventista garante que a tragédia no Haiti corresponde a uma profecia enquanto o baptista atribui a responsabilidade às autoridades do país: “Há uns anos vieram aqui alguns cientistas que avisaram para o perigo sísmico deste país. Ninguém tomou atenção nem preparou o futuro.” O pior aconteceu. “Houve falha de comunicação, de formação científica”, diz Brisson. “Mas isso é passado, agora é preciso reconstruir o país”, adianta. “Pode ajudar-me a sair do Haiti?”, insiste.

Ionline / Padom

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