Festas juninas, o evangélico entre a cultura e a fé

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Milho verde, canjica, pé-de-moleque, quebra-queixo, pipoca, muita música… Dançar quadrilhas, pular fogueira, soltar fogos e outras manifestações se tornaram comuns nos meses de junho, marcando as conhecidas festas juninas. Com forte raiz cultural e folclórica, elas guardam cada vez menos a tradição católica de celebrar os “santos” Antônio, João e Pedro. Todos os anos, o mês de junho traz à tona uma discussão que divide opiniões. As manifestações juninas ou joaninas, como eram conhecidas, chegaram ao Brasil com as caravelas do navegador português Pedro Álvares Cabral, em 1500.

Acredita-se que estas festas tiveram origem no século XII, na região onde hoje é a França, com a celebração do solstício de verão (dia mais longo do ano, 22 ou 23 de junho), que marcava o início das colheitas, e que aos poucos foram sendo absorvidas pelo cristianismo europeu e, depois, transmitidas ao Novo Mundo.O pesquisador Eliomar Mazoco, presidente da Comissão Espírito-Santense de Folclore, apresenta uma outra possível origem para as festas juninas. No hemisfério Norte, em torno da fogueira realizavam-se encontros em que as pessoas se juntavam para se proteger do frio. “Ali surgiram algumas danças, brincadeiras, hábitos culinários e gastronômicos que depois se transformaram nessas festas”, explanou. Mais tarde as igrejas se apropriaram, incluíram outras simbologias e as tornaram religiosas.

No Brasil, a partir da década de 1970, o aceleramento do processo de êxodo rural e conseqüente urbanização transportaram para a cidade os costumes do campo. Gradativamente, as festas juninas foram perdendo o sentido religioso e místico, assumindo um papel de preservação da cultura. Atualmente, não apenas escolas, mas até igrejas evangélicas têm realizado eventos juninos, numa forma de resguardar os laços de memória saudosista deste passado rural por meio de divertimento.

“É preciso dissociar o folclore, a brincadeira, da religião. Todos os homens possuem hábitos, cada região tem a sua cultura popular, são manifestações do cotidiano”, afirma Eliomar, ressaltando que existem outras explicações, cada uma diferente da outra, para elucidar as origens das festas juninas.

O fato é que, com o crescimento do número de evangélicos no Brasil, a questão tornou-se nos dias de hoje séria e delicada, podendo ser um assunto espinhoso para conversas numa roda de amigos, quer comunguem ou não da mesma crença. Alguns dão ênfase ao aspecto folclórico. Outros, não aceitam nem mesmo o aspecto cultural da festa e afirmam que ela é proibida aos evangélicos, por configurar idolatria. Proibir ou permitir, e por quê? O evangélico pode ou não participar das festas juninas?

Para o pastor Erasmo Vieira, da Igreja Batista Morada de Camburi, este assunto já entrou no terreno das divergências emocionais, ultrapassando a discussão bíblica, mas deve ser analisado sob vários aspectos. O primeiro seria a ligação com a adoração aos “santos”, contraposta à condenação de qualquer atividade que esteja ligada à idolatria (Êxodo 20.3-4, Isaías 44 e 45). “Qualquer tipo de festa que tenha por finalidade adorar alguém é condenável”, disse. Para o evangélico, santos são todos os que se converteram e aceitaram a Jesus Cristo como único Senhor e Salvador, dispostos a viver de acordo com os ensinamentos da Palavra escrita na Bíblia.

Por outro lado, o pastor insiste em que o cristão reflita, porque com a radicalização estão se perdendo a tradição cultural e a relevância folclórica. “As festas folclóricas, como as juninas, possuem este aspecto cultural que deve ser levado em consideração. Contudo, temos de ter cautela, para não escandalizarmos ninguém, conforme nos ensina o apóstolo Paulo (1 Coríntios 8:13). Devemos ter discernimento para sabermos o que fazer”, explicou Erasmo.

Até mesmo o povo de Israel, conforme lembrou o pastor Erasmo, tinha e tem festas nas quais outros aspectos são valorizados em detrimento da religião. “Na Festa do Purim, por exemplo, não se fala o nome de Deus, apesar de ter sido uma graça oferecida pelo Pai ao seu povo”, lembra. O Purim é um feriado judaico, no qual se festeja o livramento do povo judeu do plano de destruição de Amã, narrado no livro de Ester. No evento o livro é lido publicamente, há distribuição de comida e dinheiro aos pobres, além de danças e pratos típicos.

“Se for levar ‘ao pé da letra’, há outro exemplo. A nossa festa do Natal foi criada para encobrir a festa pagã das saturnálias, das quais os cristãos não deveriam participar”, completa o pastor para justificar que os exageros podem conduzir o evangélico a uma alienação de todas as festas que acontecem. As saturnálias eram festas de comilança e orgias da carne que precediam a quaresma, período de jejum e introspecção. Com a aceitação do cristianismo como religião oficial no século III em Roma, foi estabelecido no século IV o calendário litúrgico com a instituição da comemoração do nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro.

Para Erasmo esses exemplos dão a dimensão de que “então, existe um elemento de abertura para discutir as festas juninas separada do aspecto religioso, que quase não mais existe. Assim, podemos ver a festividade como coreografias folclóricas, quadrilhas, danças e comidas típicas da época da colheita do milho”.

A partir da Palavra

Vários textos bíblicos podem ser usados como base para os cristãos evangélicos, mas a interpretação dada a eles é que vai fundamentar a decisão. A 1ª Carta aos Coríntios, no capítulo 8, fala claramente sobre o comer das coisas sacrificadas aos ídolos, mas diz também que o ídolo por si só não é nada e afirma que a consciência do indivíduo é que se deixa contaminar. Na mesma carta, Paulo diz aos coríntios (1 Co 6.12): “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma”. Está aí o deferencial da liberdade cristã, permitindo ao homem viver no mundo sem ser governado espiritualmente por ele.

“Cada pessoa deve entender que tem competência para interpretar o que está dito na Bíblia e que, com a orientação do Espírito Santo, encontrará suas respostas pessoais. Porém, é de extrema importância que o membro de uma determinada igreja procure saber o que pensa a sua igreja e o seu pastor, para não criar constrangimentos nem para si mesmo, nem para os outros”, reforçou pastor Júlio Cezar de Paula Brotto, Igreja Batista de Itacibá.

Para o pastor José Vicente de Lima, da 1ª Igreja Presbiteriana de Vila Velha, os evangélicos deveriam ignorar este tipo de festividade e, nem por isso, sua atitude configuraria extremismo. Ele não concorda com a inclusão evangélica nem mesmo em se tratando de comemorações em outras datas e com outros nomes, como “festa na roça” ou “festa caipira”. “Com todo o respeito a quem queira participar, a configuração da festa muda, mas o mandamento do Senhor é o mesmo. Nós pregamos isto. E ao não seguirmos este mesmo Senhor, perdemos a comunhão íntima com ele. As pessoas podem até dizer que não concordam com isso porque os tempos e os costumes são outros, mas a Bíblia é a mesma”, justifica.

O pastor José argumenta que a alegria do evangélico é outra, que não é necessário afastar-se das coisas do mundo, mas que se deve buscar primeiro sabedoria e discernimento espiritual. Entretanto, para ele, de acordo com a Palavra a proibição é evidente. Alguns podem participar destas festas e não se deixar dominar, mas outros acabam incorrendo em erro. Para não errar, o melhor seria não ir. “O senhor participou de festas, de casamentos sem com isso se contaminar. Há festas e festas”, encerrou.

Quando cultura e fé dialogam, a resposta para as dúvidas do cristão evangélico deve se firmar na Palavra e em uma fé inabalável, no aconselhamento com o próprio pastor, e com Deus. O crente tem a liberdade de dizer sim ou não de acordo com I Co 10.23. A liberdade cristã vem do conhecimento de Jesus e da Palavra que liberta (João 8:31.32) (Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará). As pessoas não podem se fechar para a discussão de temas, mesmo que polêmicos, foi o que alertou o pastor Erasmo. Cristo veio, viveu como homem e mesmo assim deixou como herança a sua paz libertadora, que somente Nele é possível encontrar: “Tenho-vos dito isto, para que em mim tenhais paz; no mundo tereis aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (Jo 16.33). Acima de tudo, é preciso buscar pela paz que existe no Senhor (I Co 14:33), mas a necessidade de estar no mundo e participar dele, sem contudo deixar-se conduzir, faz parte do dia-a-dia do evangélico.

Festas juninas e as crianças Com relação à educação dos filhos, os pais e educadores evangélicos devem nortear a sua orientação da mesma forma, baseando-se na Bíblia. Não é preciso ceder às pressões sociais. Os cristãos podem aceitar manifestações populares, culturais, musicais e artísticas que representem a identidade de um povo ou de uma nação, desde que os seus princípios inegociáveis da Verdade não sejam comprometidos, e que a sua liberdade social não seja violada.

De acordo com o Planejamento Curricular Nacional, as instituições de ensino têm como dever preservar e transmitir valores culturais da nação, embora não tenham o direito de obrigar as crianças a participarem de qualquer manifestação. Porém, no caso das festas juninas e de outras comemorações com sincretismo religioso, as crianças evangélicas podem passar por constrangimento por não participar. Para que isso não ocorra, é bom verificar a proposta pedagógica e deixar claro o posicionamento da família logo no início do ano letivo. e isso deve ser conversado com respeito entre pais, professores e pedagogos.

É sempre bom lembrar que no Capítulo II do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estão previstos mecanismos de proteção. Os artigos 15, 16 e 17 prevêem:

  • Art. 15 – A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis
  • Art. 16 – O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: (…) II – Opinião e expressão; III – Crença e culto religioso.
  • Art. – 17 O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.

Matéria publicada na edição nº 130 da Revista Comunhão / Padom

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