Crianças são mortas em ritual macabro

613

Allan Ssembatya tinha apenas 7 anos em 2009, quando  foi sequestrado por feiticeiros para ser morto em um ritual. O episódio

 não é a único em Uganda, país africano onde ainda acontecem sacrifícios macabros de animais, crianças e adultos. Mas talvez seja um dos mais impressionantes pela violência do ataque e, principalmente, porque Allan sobreviveu.
Com a marca de um talho na cabeça, resultado de um golpe de facão tão fundo que rachou seu crânio, o pequeno Allan resistiu à barbaridade e tornou-se um dos símbolos das campanhas internacionais contra este tipo de ritual covarde e desumano.
O esforço para acabar com a prática envolve forças policiais locais e instituições internacionais, como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), além de organizações indepententes que vêm realizando importante trabalho de documentação e divulgação de histórias como a do menino Allan. É o caso da britânica VSO, formada com o objetivo de combater a pobreza em países em desenvolvimento, e da Campanha do Jubileu, grupo cristão de defesa dos direitos humanos e contra opressão. As fotos e muitos dos relatos desta reportagem fazem parte de um relatório recente com denúncias graves feitas pelo grupo.
Mais do que noticiar, a organização Jubileu também tem ajudado vítimas como Allan. Seu pai, Hudson Kizza Semwanga, teve que vender a casa em que a família vivia para pagar o tratamento do menino. Além do talho na cabeça, ele também tem cicatrizes no pescoço e nos ombros e pode ter problemas no seu desenvolvimento por ter sido castrado no ritual. Até hoje, chora ao lembrar do episódio e acorda assustado em meio a pesadelos lembrando o que aconteceu.
Sua história resume a covardia com que os bruxos costumam agir. Allan foi sequestrado por três homens quando voltava da escola em Mukono, um vilarejo localizado a 30 quilômetros de Campala, a capital de Uganda. Após sofrer golpes profundos, ele perdeu a consciência e entrou em coma. Foi considerado morto pelos feiticeiros e deixado no meio do mato.
O menino foi encontrado horas depois por parentes e amigos em uma poça de sangue. Internado, ficou 1 mês em coma até retomar a consciência, tamanha a gravidade dos ferimentos. Até hoje sofre com as sequelas. Além de ter perdido a sensibilidade do lado esquerdo do corpo, as lesões poderão levar a mais problemas de desenvolvimento no futuro, tais como a diminuição gradual da densidade óssea e o crescimento dos seios, devido à castração.
Recuperado, ele reconheceu os três agressores: um bruxo chamado Awali, e seu irmão Abass, além de outro homem conhecido apenas como Paul. Mesmo assim, dificilmente os agressores serão punidos. Desde que o governo iniciou o combate à prática de sacrifício apenas uma pessoa foi condenada por este tipo de crime.
Falta de vontade política, medo de represálias e temor da suposta magia de tais feiticeiros estão entre os motivos que explicam a impunidade.

Não são poucos os casos de sacrifícios humanos. Nos último 5 anos, ao menos 43 crianças foram assassinadas em rituais, além de 29 adultos. Isso considerando apenas as mortes documentadas por organizações internacionais com base em dados do governo e relatos de familiares e amigos das vítimas.
Na prática, o número de crianças mortas pode ser bem maior do que o registrado. Os dados mais recentes da Unicef no país indicam que 651 crianças desapareceram entre 2006 e 2008. Muitos dos corpos utilizados em sacrifícios não são sequer encontrados.
Além de cortar e deixar as vítimas sangrando, tais feiticeiros também têm o costume de enterrá-las vivas em locais em construção como forma de garantir a prosperidade dos negócios. Em depoimento ao jornal local “Sunday Vision”, um operário de construção civil descreveu o assassinato de uma menina na obra em que estava trabalhando em 2008:
“Foi numa sexta-feira, 1h da madrugada. Como pedreiro, eu fazia turnos noturnos. Na noite em questão, minha turma foi liberada do expediente e orientada a voltar somente no dia seguinte. Eu perdi as instruções e fiquei”, conta o operário, que evita se identificar por temer represálias. “O proprietário, um homem rico, entrou dando a mão para uma criança de cerca de 7 anos, com um vestido branco e uma boneca nas mãos. Primeiramente, pensei que era a filha dele”, descreve, para narrar como a menina foi morta com o auxílio de mais dois homens.
“Um deles começou a misturar concreto. O homem rico entregou a menina para o outro, que a colocou de pé em um dos fossos. Em seguida, eles começaram a encher o fosso de concreto. A criança gritou umas três vezes e então parou. Ela foi enterrada viva”, narra. A construção, ironicamente, virou um shopping com lojas especializadas em roupas de crianças.
Mesmo sendo parte de uma tradição religiosa baseada em crenças locais, tal costume é criticado mesmo por quem defende liberdade de religião e direitos de minorias. Matar crianças em busca de recompensas como dinheiro, poder ou proteção não é algo aceitável.  “Esse tipo de prática vai contra todos os padrões civilizatórios. É uma explícita violação do direito humano e de todos os direitos humanos conquistados até hoje pela humanidade”, defende Dojival Vieira, conselheiro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo.
“Práticas como estas devem ser banidas. Não sabia que isso ainda acontecia em Uganda, mas infelizmente sempre foram comuns na história da humanidade práticas que utilizam sacrifício humano. O mais chocante é que continuem existindo ainda nos dias de hoje. Isso revela o tamanho do atraso humano e espiritual da nossa sociedade. Esse atraso é compatível com a ganância e a busca pelo dinheiro a qualquer custo”, completa Vieira.

A crença no poder de tais feitiços é tão grande que, nos vilarejos pobres de Uganda, há registro de casos em que as próprias famílias entregaram crianças em troca de benefícios. Foi o que aconteceu com a pequena Evra Mudaali, morta quando tinha 3 anos, em um ritual no qual fizeram parte seus avós e tios.
No dia em que a mãe Rosemary Anyango viajou para cuidar de um parente doente e o pai Ronald Serwajjo teve que trabalhar, os avós levaram a garota a um feiticeiro. Na frente dos tios, Evra teve a orelha esquerda arrancada e a axila esquerda perfurada. Foi pelo rasgo embaixo do braço que o bruxo arrancou o coração da menina. Mais tarde, os parentes explicaram aos pais que o ritual serviria para iniciar o tio, Yudu Nakacho, na bruxaria. Com a morte, ele ganharia o poder de curar as pessoas.
“O sacrifício de crianças ganhou força porque as pessoas viraram adoradoras de dinheiro. Elas querem ficar ricas e acreditam que o sacrifício trará riqueza”, explicou o pastor Peter Sewakiryanga, em entrevista recente à rede britância “BBC”. “Há pessoas interessadas em comprar essas crianças por um bom preço. O sacrifício de crianças virou um negócio por aqui”, denuncia.
A prática é tão rotineira e fácil de ser encontrada que, na viagem que a equipe da “BBC” fez ao país, o repórter conseguiu encontrar-se com um feiticeiro. Após se apresentar como empresário interessado em fazer negócios na região, o jornalista viu uma cabra ser morta na sua frente e ouviu que, se quisesse, poderia encomendar um sacrifício humano. O vídeo em que ele registra a oferta foi entregue à polícia local. O que normalmente não costuma dar resultado.
Mesmo parentes das vítimas não têm conseguido a punição dos agressores. Tepenensi Nombogwe, avó de Steven Kironde, conta que, ao procurar ajuda após encontrar o neto decapitado e sem o esôfago no quintal de casa, recebeu uma oferta por parte da própria polícia para ficar quieta. As autoridades ofereceram o equivalente a R$ 300 para que a senhora esquecesse o caso.
O poder sobre os locais se reflete na ousadia dos feiticeiros. Sarah Nahkenyoa sentiu isso após mobilizar amigos e vizinhos na busca por seu filho Sula. Após dias tentando encontrar o garoto, a mãe foi chamada à escola. Os assassinos haviam deixado a cabeça do garoto na mesa do diretor com um recado dizendo que ele não era puro o suficiente para os rituais necessários.
Em outro caso, um bruxo conhecido como Otema atacou a criança de uma família da qual era amigo. Ao encontrar o pequeno George Mukisa, de apenas 4 anos, sozinho em casa, ele convenceu o garoto a sair com ele, oferecendo doces. “Ele me levou para o mato, me cortou e eu gritei”, conta o garoto. Sem aviso ou anestesia, Otema utilizou uma faca para castrar o menino. Hoje, além de estar sujeito aos mesmos problemas de desenvolvimento que Allan, ele ainda tem que lidar com dificuldades para urinar. Os médicos tentaram reconstruir seus genitais, mas ele depende de um tubo para conseguir fazer xixi. O ataque foi tão brutal que, ao saber o que aconteceu, seu pai desmaiou. Ambos, o pai e a mãe, abandonaram a criança após a feitiçaria. Nenhuma medida de amparo foi tomada pelo governo e hoje ele é cuidado pela avó Nakku Musana, que diz ter medo do futuro reservado para o seu neto.
A prática de magia com sacrifício de crianças está diretamente relacionada à miséria e à fragilidade institucional do país. Indicadores da Unicef apontam que, mesmo para os pequenos que não sofrem   ataques de feiticeiros, a situação é crítica. Uma em cada cinco crianças sofre de desnutrição no país e uma em cada dez morre antes de completar  anos. Um cenário de miséria e pobreza em que superstições encontram amplo respaldo.

Folha Universal / Portal Padom

Deixe sua opinião