Comportamento homossexual: Homossexualidade: aceitação e mudança

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homossexualidade aceitacao e mudancaUm dos mais nítidos traços da modernidade é a valorização da ciência, mesmo sabendo-se que sua palavra não é definitiva e que ela tem sido manipulada com freqüência. A psiquiatria, com seus 200 e poucos anos de reconhecimento, já passou por vicissitudes. Há aqueles que apontam, já no seu nascedouro, uma tendência para o exercício do controle social. Machado de Assis, no seu conhecido conto “O Alienista”, ilustrou com ironia os riscos que lhe são inerentes, ao descrever as peripécias do personagem Dr. Simão Bacamarte, que, num momento, trancafiou quase toda a população e, noutro, se arvorou em avalista da normalidade de inúmeras sandices.1

Vejo que corremos tais riscos ao nos perguntarmos o que a psiquiatria tem a dizer sobre a experiência de pessoas que sentem atração por outras do mesmo sexo. Se a chamada psiquiatria democrática já nos aponta a superação de um período repressor, é de se reconhecer que ela continua ávida por respeitabilidade, esforçando-se por parecer sempre “politicamente correta”. Assim, torna-se interessante entender o que se dá com as suas tão comentadas listas que podem ser usadas, conforme o que se pretende, para incluir ou excluir qualquer um de nós.A “Classificação Internacional de Doenças”, 10ª edição (CID-10), publicada pela Organização Mundial da Saúde em 1992, excluiu a homossexualidade, como tal, da sua relação de transtornos de comportamento. Ali encontramos listados os transtornos de identidade sexual e os transtornos de preferência sexual, nos moldes da classificação anterior (CID-9). Há, na verdade, um agrupamento dos denominados transtornos psicológicos e de comportamento associados ao desenvolvimento e à orientação sexuais; e ainda um código para aconselhamento relacionado à atitude, comportamento e orientação sexual.2 Faz-se necessário explicar melhor:

— Identidade sexual diz respeito ao senso íntimo que leva alguém se identificar como do sexo masculino ou do feminino, moldando emoções e comportamentos. Os transtornos de identidade sexual dizem respeito a condições em que existe “um desejo de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico”.3 A referência principal são os casos de transexualismo, em que há um desejo profundo de mudança do sexo biológico, levando, nalgumas vezes, às cirurgias para alteração dos genitais. Aqui estariam também certos casos de transvestismo (assim a palavra está grafada no CID-10).

— Transtornos de preferência sexual remetem a condições nas quais os desejos sexuais são dirigidos para substitutos considerados inadequados. Incluem casos de erotização de objetos (fetichismo), de exposição dos genitais (exibicionismo), de focalização erótica da intimidade de outrem (voyeurismo), além de sadomasoquismo, pedofilia e outros.

Nenhuma dessas situações referem-se, em princípio, à homossexualidade, que diz respeito à orientação sexual, isto é, ao direcionamento do desejo e do comportamento sexual para pessoas do mesmo sexo. Em relação a esse caso, encontramos listados o transtorno de maturação sexual e o transtorno de orientação sexual egodistônica, nos quais a identidade sexual não está em dúvida, isto é, a pessoa reconhece-se como sendo do próprio sexo biológico. O possível mal-estar fica no âmbito da orientação sexual que pode ser homossexual, heterossexual ou bissexual; e que, no caso, passa a ser fonte de conflito e determina a busca de sua superação ou ajustamento.

É preciso reconhecer que a mudança efetuada na listagem oferecida pela Organização Mundial da Saúde foi precedida e fortemente influenciada pelo que acontecera anos antes, no âmbito da Associação Psiquiátrica Americana. Essa entidade patrocinou o que denominou Manual de Diagnóstico e Estatística (DSM), em sucessivas edições, onde foram progressivamente assimiladas as tendências da sociedade liberal e as pressões de grupos organizados. Assim, decidindo sempre por votos majoritários em assembléias, restringiu-se sistematicamente as menções à homossexualidade.

Aqui cabem algumas considerações. A primeira delas é que, no seu estágio atual, a psiquiatria assume uma postura humilde e reconhece as limitações dos conhecimentos sobre a maior parte das condições clínicas, especialmente aquelas relacionadas ao comportamento. Assim, aboliu-se o termo “doença”, pois ele remete a um entendimento causal que, no momento, ainda é impossível. Portanto, não é só sobre a homossexualidade que não se fala de doença; prefere-se sempre a expressão “transtorno”.

Em segundo lugar, o próprio CID-10, na sua apresentação, nos adverte da pequenez de suas pretensões: “Uma classificação não pode nunca ser perfeita e sempre será possível introduzir melhorias e simplificações no futuro, na medida em que aumente o nosso conhecimento”. E ainda: “As descrições e diretrizes não contêm implicações teóricas e não pretendem ser proposições completas acerca do estágio atual do conhecimento dos transtornos. Elas são simplesmente um conjunto de sintomas e comentários sobre os quais houve uma concordância”.4 Assim, o lugar que a homossexualidade ocupa atualmente em tal classificação é circunstancial e pode mudar a qualquer momento.

Vê-se, portanto, que não é seguro tirar nenhuma conclusão de alcance vital a partir de algo tão movediço. Na verdade, tem-se dado valor exagerado a uma lista de situações, que é definida por voto e despida de qualquer atribuição teórica. Os psiquiatras a utilizam para fins práticos e, mesmo assim, são muito acusados por tal uso. Curioso é, portanto, que os seus habituais críticos se apropriem desse instrumento de trabalho para construir pressupostos e baixar resoluções.

Devemos ter presente que o entendimento da homossexualidade é complexo e exige muito mais esforço do que uma simples troca de etiqueta. As teorias sobre o desenvolvimento humano, tais como a psicanálise, por exemplo, têm mais a dizer. Sigmund Freud, como é sobejamente conhecido, postulou a idéia da bissexualidade constitucional do ser humano, a partir da qual cada um estruturaria sua orientação sexual. Fatores ambientais, tendo em relevo a relação entre a criança, sua mãe e pai, poderiam ensejar embaraços no desenvolvimento pessoal, determinando fixação em estágios pré-genitais.

Como melhor se explica: “Freud pensava especialmente na homossexualidade masculina como representação de um fracasso no desenvolvimento sexual normal, uma falha na adequada separação do menino de sua mãe, mantendo um intenso vínculo sexual com ela. Como resultado, o menino já crescido identificar-se-ia com ela e procuraria fazer seu papel na tentativa de provocar o renascimento da relação que existia entre ambos”. Essa incapacidade de se separar da mãe poderia ser resultante de diversos fatores e sempre estimulada pela introjeção da figura paterna como fraca, ausente ou hostil. Quanto à homossexualidade feminina, “estava definida de forma menos clara na mente de Freud, mas ele pensava nela como uma imagem em espelho do processo que destacou na homossexualidade masculina”. É bom lembrar que, mesmo tendo sido formulada há anos, a teoria freudiana não foi contestada. Pelo contrário: “A observação de Freud e de outros analistas de que alguns homossexuais tendem a lembrar seus pais como hostis ou distantes e suas mães como mais próximas que o comum tem tido confirmações recentes”.5

Outras contribuições convergem na construção de um modelo bio-sócio-cognitivo do desenvolvimento sexual.6 Partindo das pesquisas sobre comportamento animal, verifica-se que, somente quando em cativeiro e em privação de parceiros de outro sexo, ocorrem práticas homossexuais entre mamíferos. Isso leva um destacado autor à seguinte observação: “Devemos tirar sérias considerações da possibilidade de que preferência homossexual exclusiva é um fenômeno unicamente humano”.7

Deve-se enfatizar que não foi possível encontrar evidências conclusivas sobre fatores inatos na determinação do comportamento sexual. Algumas pesquisas entre gêmeos idênticos parecem sugerir um fator genético importante ou, pelo menos, uma predisposição a reagir às influências ambientais de modo semelhante. Entretanto, a coincidência de atração sexual por pessoas do mesmo sexo, em nenhum estudo, ultrapassou a taxa de 50% no caso de homossexualismo masculino e menos ainda em se tratando de mulheres. Isso mostra que outros fatores atuam de forma relevante. É de todo improvável que comportamentos tão complexos como os relacionados à sexualidade possam ser imputados a uma ou outra alteração genética.

Particularidades no sistema nervoso central têm sido buscadas, especialmente em relação ao hipotálamo, uma região do cérebro fortemente envolvida nas vivências afetivas; e também na chamada comissura anterior, uma estrutura que faz conexão entre os dois hemisférios cerebrais. Alguns estudos sugerem semelhanças entre essas regiões no cérebro de homens que experimentam atração por pessoas do mesmo sexo e as encontradas em mulheres. Não se pode afirmar, contudo, se elas estavam presentes no nascimento ou se resultaram do próprio comportamento sexual.

Fatores atuantes durante o desenvolvimento intra-uterino poderiam influenciar no desenvolvimento do cérebro fetal. Além disso, é de se admitir que qualquer interferência neurológica ou hormonal que perturbe o desenvolvimento na infância ou adolescência poderá repercutir nas expressões posteriores da sexualidade. Sabe-se que alterações endócrinas podem repercutir sobre o desenvolvimento físico e psíquico, levando até mesmo a alterações na estrutura e função dos órgãos sexuais e na apresentação dos caracteres sexuais. No entanto, salvo em casos isolados, os achados não são suficientemente consistentes e, mesmo que confirmados em estudos futuros, nunca terão o valor de determinantes sobre o comportamento sexual, mesmo sendo reconhecidos como moduladores das reações emocionais.

Conclusões precipitadas no campo da sexualidade humana podem levar a equívocos e contradições. Na verdade, quando se apega a uma causalidade inata e física da homossexualidade, incorre-se num reducionismo, atribuindo papel definitivo aos aspectos biológicos. De uma opção comportamental, a homossexualidade passa a ser vista como uma imposição biológica, ignorando-se uma característica humana fundamental, que é a capacidade de fazer escolhas, mesmo que dentro de limitações; e o direito de revê-las, quando for o caso. Muitos, imbuídos daquela disposição radical, podem sentir-se totalmente autorizados a assumir tal orientação sexual. Porém, seria bom lembrar que, num futuro próximo, alterações genéticas e constitucionais poderão ser objeto de intervenções, até mesmo por meio da engenharia genética e da medicina fetal.

Vê-se que nada autoriza entendimentos radicais: “É óbvio que o desenvolvimento do gênero é multifatorial, de forma que a etiologia da orientação sexual deve ser também multifatorial”.8 Os componentes inatos, nos casos em que venham a ser identificados, atuariam no máximo como predisponentes ao aprendizado cognitivo, que se desenvolve primariamente no âmbito das relações intrafamiliares. Nos seres humanos não se pode desconhecer que influências ambientais atuam precocemente por meio do relacionamento com os pais e com pessoas significativas. A própria atribuição de gênero, feita ao nascer, pesa na formação da identidade pessoal.

A partir da matriz psíquica que assim se forma, o reforço social passa a exercer o papel de lapidador final. O distanciamento de um grupo de iguais na infância e adolescência parece relevante, pois, quando estimulados por mecanismos grupais os jovens aprendem sobre respostas sexuais específicas, consolidando a identidade própria. Nesse contexto, alguma forma de expressão da sexualidade serve como reforço da auto-estima e conseqüente afirmação comportamental. Por outro lado, insucessos podem ter repercussões negativas. Por fim, a própria atitude da sociedade, quando acentua a dicotomia homo/heterossexual, força uma opção apressada, a partir de então vista como exclusiva, e que é selada pelo preconceito e rotulada como definitiva.

Na verdade, o entendimento da homossexualidade requer uma visão ampla das motivações do comportamento humano, que tem na plasticidade e possibilidade de mudança uma das suas características mais marcantes. Pesquisas têm mostrado que até estruturas do sistema nervoso podem ser alteradas a partir de atitudes pessoais e influências externas, como acontece pela psicoterapia, por exemplo.9 Assim fica melhor resguardada a liberdade, mesmo que relativa, que caracteriza a pessoa que somos, dotados de vontade e responsáveis pelo direcionamento e expressão dos nossos desejos.

Duas conseqüências práticas decorrem desse entendimento alargado. Em primeiro lugar, os pais e educadores têm o direito e o dever de intervir na educação das crianças e adolescentes, oferecendo-lhes condições para o desenvolvimento pleno de suas potencialidades. As dificuldades emocionais e relacionais deverão ser detectadas com presteza e receber atenção precoce, evitando que embaraços e dificuldades se prolonguem e determinem comportamentos embaraçosos.

Em segundo lugar, todas as pessoas têm o direito de ser ade-quadamente informadas das possibilidades de desenvolvimento da própria sexualidade e estimuladas ao compromisso de assumi-la de forma consciente. Se estiverem insatisfeitas e desejarem mudanças, devem ter a vontade respeitada e o acesso garantido às oportunidades e formas de ajuda disponíveis; estudos têm demonstrado que pessoas com atração por outras do mesmo sexo, quando suficientemente motivadas, podem avançar muito na reorien-tação da sua vida sexual.10

Acima de tudo, porém, convém destacar que questões pessoais e íntimas, como são as relacionadas à sexualidade, merecem ser vistas com compreensão e atitude respeitosa. Principalmente na prática da ajuda e assistência, quando se abordam casos específicos, deve prevalecer a acolhida calorosa e a solidariedade incondicional. Com freqüência, há muito sofrimento envolvido na história de vida de cada um, pelo que as manifestações da sexualidade devem ser entendidas como “soluções particulares que cada ser humano tem de dar diante do enigma da própria organização pulsional”.11

Notas:

1. ASSIS, M. de. “O alienista”. São Paulo, Ática, 1975.

2. OMS. “Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10”. Trad. Dorgival Caetano. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993.

3. Idem. p. 210.

4. Idem. p. IX e 2.

5. KANDEL, E.R. A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual. “Rev. Psiquiatr”. RS, 25 (1): jan./abr. 2003, p. 154 e 155.

6. HECKERT, U. Desenvolvimento sexual; modelo bio-sócio-cognitivo. “Inform. Psiq”. 17 (3): 1998, p. 93 a 97.

7. BANCROFT, J. “Human sexuality and its problems”. 2. ed. Edinburgh, Churchill Livingston, 1989. p.177.

8. KANDEL. Op. cit. p. 156.

9. KANDEL. Op. cit. p. 157 e 158.

10. EPSTEIN, R. Editorial. “Psychology Today”, Jan./Feb. 2003, p. 7 e 8; YARHOUSE, M.A.; THROCKMORTON, W. Ethical issues in attempts to ban reorientation therapies. “Psychotherapy”, 39 (1), 2002, p. 66 a 75.

11. CECCARELLI, P.R. Sexualidade e preconceito. “Rev. Lat. Psicopat. Fundam”., 3 (3): p.18 a 37.

Uriel Heckert é doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo e professor da mesma ciência na Universidade Federal de Juiz de Fora. É presidente do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC).

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