O texto que você irá ler a seguir, foi publicado originalmente no site da Revista VICE BRASIL…

“Jesus Cristo foi o primeiro trans”, diz a 1ª pastora transgênera da América Latina

REVISTA VICE BRASIL

Milhares de pessoas se aglomeraram no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, no último dia 15 de junho, para aproveitar o feriado de Corpus Christi e inaugurar o fim de semana prolongado que a data prometia. Minas, manos e monas concentrados no coração da cidade estavam envoltos em bandeiras do arco-íris na Feira LGBT que antecipou a Parada deste ano. Famílias também tinham lugar na festa com crianças a tiracolo para encontrar amigos e dançar até o anoitecer. Foi nessa confusão organizada que me encontrei com Alexya Salvador, mulher trans de 36 anos e pastora da Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), que me aguardava para uma entrevista sobre sua trajetória e a recente adoção de Ana Maria, uma menina transgênera de 10 anos de idade.

Conhecida como a “Igreja dos Direitos Humanos”, a ICM foi criada em 1968 nos Estados Unidos e em 2003 chegou no estado do Rio de Janeiro para alguns anos depois se instalar em um espaço modesto no bairro da Santa Cecília, na capital paulista mais estruturada. O objetivo da igreja é abraçar a população LGBTQ, que não costuma ter espaço no cristianismo tradicional. A ICM aceita casamentos homoafetivos, conta com drag queens em seus eventos e, entre seus pregadores, está Alexya, a primeira pastora transgênera da América Latina.

Alta e de cabelos lisos até o ombro, a líder religiosa me aguardava na barraca da ICM ao lado de Gabriel e Ana Maria, seus dois filhos. O clima era de festa. Um DJ na barraca vizinha tocava animadamente um setlist de músicas pop e Alexya fazia o possível para olhar os filhos e conseguir atender todo mundo que aparecia para tirar fotos e paparicar a pastora.

Passei algumas semanas tentando entrevistá-la. Com uma rotina corrida, Alexya se desdobra entre dar aulas de português e inglês em dois colégios diferentes, fazer as tarefas da igreja, cuidar de seus filhos e da casa ao lado de Roberto Salvador, seu marido, e ainda costura para descolar uma renda extra. Por sorte, no feriado pudemos nos encontrar.

Assim como muitas histórias sobre o gênero trans, ainda criança Alexya se sentia diferente. Ela, que nasceu e reside até hoje em Mairiporã, região metropolitana de São Paulo, foi criada em um ambiente familiar muito unido, conservador e católico. A pastora, porém, acabou encontrando na fé um refúgio paradoxal para sua identidade de gênero que a confundia e a afligia desde que se conhece por gente. Ao mesmo tempo que encontrava conforto na religiosidade, também temia estar cometendo um pecado mortal aos olhos de Deus — por não se sentir de acordo com as normas da igreja.

Foi criada como um menino durante mais da metade de sua vida. Se formou no colegial e decidiu frequentar o seminário para se tornar um padre católico. Frequentou por quatro anos o seminário e se formou em Filosofia na PUC-Campinas. Ainda assim, dentro de si havia uma tempestade que custava a passar. “Quando terminei o curso de Filosofia saí do seminário, entendi lá não era o lugar para mim. Eu tinha dentro de mim esse peso de Deus me condenar. Não queria ser um padre e causar mais um escândalo para a igreja”, relembra.

Ao abandonar a ideia de se tornar padre, decidiu conversar com os pais. Tinha 24 anos e estava convencida em se apresentar como a mulher que sempre se sentiu ao longo da vida. No entanto, foi brecada imediatamente pelo pai. “Meu pai foi logo dizendo: ‘se você for viado eu até aceito, mas se eu vir você vestida de mulher eu te mato’. Na hora tive que pensar rápido e vi que seria uma porta aberta me aceitar como um homem gay”. Um obstáculo foi vencido naquele momento, mais ainda faltava muito para Alexya conquistar a paz que queria.

Foi quando conheceu o seu marido, Roberto Salvador, em 2009, em uma escada rolante do metrô da Sé, que descobriu o amor. Engataram um namoro. Roberto, como um homem cisgênero e homossexual e Alexya ainda no conflito de se assumir mulher. No mesmo ano, foram morar juntos e após dois anos casados buscaram uma igreja inclusiva que oferecesse casamentos gays. Assim, Alexya encontrou a ICM.

Ao frequentar cada vez mais a igreja, ela teve contato com travestis e drag queens, o que a ajudou a entender melhor quem era. Chegou a se vestir com apetrechos e roupas femininas, ao ponto de ficar impossível guardar sua transgeneriedade a sete chaves como o fez durante toda a vida. Ao se revelar como uma mulher trans em 2012, teve medo de perder a família que construiu. “Tive medo de perder meu marido se me assumisse mulher”.

Para os pais, se abriu em 2012. O pai, por sua vez, demorou um período para entender a notícia tão complexa trazida pela filha. Já seu marido a colheu de imediato. “Ele tinha tudo para falar que era gay e me largar, mas ele falou que me ama independentemente do que ele está vendo”. Assim, a Alexya dentro de Alexander, seu nome de registro, aflorou.

Como integrante da igreja, foi chamada para ser diaconisa da ICM a convite do reverendo Cristiano Valério. Foi assim que fez um curso de Teologia e outros ordenamentos para se tornar membra do clérigo. A expectativa é que no fim do ano Alexya passe a se reverenda da ICM. Será uma das primeiras da América Latina.

ntade de ser mãe foi crescendo junto com o desejo de formar uma família. Primeiro Alexya adotou Gabriel, menino com necessidades especiais. Foi um longo processo de adoção, no qual a pastora só podia ver o filho nos finais de semana. Quando finalmente Gabriel pode morar na residência do casal em 2015, já chamava a pastora de mãe.

A adoção de Ana Maria veio um ano depois, quando Alexya expressou em uma entrevista sobre a adoção de Gabriel seu desejo de poder acolher e ser mãe de uma criança transgênera. Uma juíza de Jaboatão de Guararapes, cidade na região metropolitana do Recife, assistiu a entrevista e entrou em contato com Alexya para falar sobre uma criança que tinha acabado de chegar no abrigo onde a equipe de assistentes sociais não sabia ao certo se a criança era trans ou não.

A criança foi designada pelo gênero masculino por conta de seu genital, mas preferia ser chamada pelo feminino. Assim, após a ligação da juíza, Alexya passou semanas mantendo todo tipo de contato permitido com a criança. A distância era grande, mas Alexya não desistiu e também não forçou nenhuma conversa sobre a identidade da criança.

Não demorou para que a criança revelasse à pastora que se sentia como uma menina. A pastora, então, foi a Pernambuco conhecer a filha que já chamava Alexya de mainha. Orgulhosa sobre sua vida ao lado do marido e dos filhos, a pastora diz que não projeta nenhuma expectativa em Ana Maria para seguir os passos da mãe. “Quero que ela possa ser quem ela quiser”, conta. “E pelo fato de ela ter os documentos retificados desde agora impede que ela sofra essa transfobia social que eu ainda passo”, explica. Alexya, há três anos, espera pelo processo de retificação de nome de registro, por isso ainda não conseguiu atualizar seus documentos com seu nome social.

“Esse Deus que fica 24 horas no trono, o Todo Poderoso, que você esbarra em algo e ele te condena — a gente não faz essa leitura, a gente acha que Deus é mãe, é amor.”

Ana Maria, batizada assim em homenagem à mãe de Alexya, teve seu o nome e gênero retificados no registro durante o processo de adoção pela juíza de direito Dra. Christiana Brito Caribé com o auxílio do laudo da psicóloga Bárbara Menezes do CRT (Centro de Referência Trans) de Campinas. Quando encontrei Alexya, pude ver Ana, que pulava alegre ao lado do irmão Gabriel ao som das músicas de divas pop que estouravam nos alto-falantes, numa imagem que traduzia a tradicional família brasileira. Segundo Alexya, assim que Gabriel conheceu Ana, os dois viraram grandes companheiros.

Foram dois longos processos de adoção enfrentados por Alexya. Em ambos, a pastora foi percursora como a primeira mulher trans a adotar um filho no Brasil e, depois, como a primeira mulher trans brasileira a adotar uma criança também trans. Por isso, fez questão de levar o canal da TV paga GNT ao seu lado para buscar Ana Maria. Segundo a pastora, a escolha de tornar público o processo de adoção não se deu apenas pelos holofotes, mas para poder mostrar para a população T que é possível ter uma família e ser o que quiser. “Queria mostrar que eu existo, que nós podemos existir”, conta.

Com a repercussão de sua própria história e da adoção de Ana Maria, Alexya conta que também foi amplamnt ofendida por internautas inconformados com a configuração de sua família. “Eu recebo inbox o tempo todo de pessoas perguntando se eu faço programa. Se eu e o meu marido topamos fazer sexo a três. A sociedade me odeia e me sexualiza ao mesmo tempo. Quando encontro uma mulher cis na rua ela elogia meu trabalho, mas quando é homem cis é outra coisa. Logo ele olha pro meu peito, me elogia de outra forma, encara minha bunda e provavelmente se pergunta o que eu tenho no meio das pernas.”

“Eu, mulher transgênera gero uma relação de amor e ódio nas pessoas, sentimentos que andam grudadinhos”, diz Alexya.

Nos primeiros minutos de entrevista, Alexya me pediu para se referir a ela nessa reportagem como uma mulher transgênera e não transexual ou travesti. “Eu não teria problema nenhum em dizer que sou travesti, mas nunca me prostituí e nunca vivi essa realidade que muitas delas acabam vivendo por falta de apoio da família. Transexual eu não sou porque não me considero disfórica ou sou doente”, explica.

No seu caso, considera-se uma mulher que transgride gênero e não aceita os padrões impostos pela sociedade atrelada ao genital de nascimento. Embora a questão pareça mais simples de ser entendida hoje, sobretudo com a pauta transfeminista cada vez mais abraçada pelos meios de comunicação e a publicidade, a própria pastora diz que encontra dificuldades de ser ouvida e reconhecida na militância LGBT.

“Se Jesus pode se transicionar, por que eu não posso?”

“Na ICM a gente ousa dizer que Deus é mulher. Porque essa parte masculina de Deus é muito feia. Esse Deus que fica 24 horas no trono, o Todo Poderoso, que você esbarra em algo e ele te condena. A gente não faz essa leitura, a gente acha que Deus é mãe, é amor,” explica Alexya.

Foi graças à teologia da Libertação que igrejas inclusivas como a ICM e figuras importantes como a de Alexya conseguiram se consolidar no meio religioso e mostrar outras leituras e facetas progressistas do cristianismo. “Sou fruto da teologia da libertação já dentro da igreja católica. Nós temos a função essencial pelo pobre marginalizado. É o povo indígena é o negro, é a mulher. Esse é o foco da militância. Aliás, se o socialismo não anda de mãos dadas com o cristianismo, deveria e muito. ”

Não parece que há assunto que possa abalar a fé ou colocar em cheque a posição de pastora de Alexya. Discute-se de sexo na ICM, aborto e todos os assuntos que são tratados como pecado no catolicismo e outras linhas mais tradicionais cristãs. Evidentemente, as instituições católicas condenam a existência de Alexya ou a ignoram completamente. “Sou um elefante pink no meio da sala”, brinca.

Engana-se quem acha que a ICM só recebe a população LGBT. “Sim, nós temos frequentadores héteros”, ri. “Temos famílias homoafetivas, heteroafetivas que vão também. É uma igreja de poucas pessoas porque nós não queremos os números, nós queremos qualidade. Por isso eu sei o nome de todo mundo que vai. Se a pessoa tá doente, se a geladeira dela tá cheia. Isso que importa. ”

A comunidade pequena mas sólida na qual Alexya se encontrou parece ser regra nas igrejas inclusivas, ainda que a pastora reclame que não há união entre outras congregações inclusivas. “Algumas igrejas aceitam gays, mas falam que não pode transar antes do casamento, por exemplo. É como se fosse uma igreja tradicional, mas só pra gay e sapatão”.

O sexo para a pastora e a doutrina da ICM passa longe de ser um tabu. “Nós consideramos sexo um presente de Deus, mas só quando ele é feito com consciência, responsabilidade e consentimento”, elenca. “De resto, não sou dona do corpo de ninguém e acredito ser ultrapassado esse modelo doutrinário do cristianismo de dizer que você não pode comer carne nas sextas-feiras ou que tal coisa é pecado. Pecado é o que faz mal para você e outra pessoa. ”

Mesmo com uma interpretação bastante moderna e pouco vista no cristianismo, Alexya parece muito bem preparada para confrontar os eremitas de teologia sobre sua visão de fé e religiosidade.

“Jesus Cristo foi o primeiro homem trans”, explica orgulhosa. “Te explico. Nós aprendemos desde o Gênesis que existe a Santa Trindade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus, portanto, mandou seu filho para a terra. Jesus, o filho, tinha o gênero divino, correto? Então, quando ele desceu para a terra ele passou a ter o gênero humano. Então, se Jesus pode se transicionar, por que eu não posso?”

 

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