A Voz Íntima do Amor

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Deus quer nos conduzir a um lugar onde poucos de nós já estivemos. É um recanto muito íntimo que Deus escolheu para fazer sua morada.
Esse abrigo sempre existiu, mas dificilmente tem se tornado em nós uma verdadeira casa. Jesus diz: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra e o meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (Jo 14.23); e ainda: “Permanecei em mim, como eu em vós” (Jo. 15.4). Deus habita no mais íntimo do nosso ser. O convite é claro e inconfundível. Habitar no mesmo lugar onde Deus escolheu fazer sua morada é o grande desafio de nossa jornada espiritual. Parece-nos uma tarefa impossível: experimentar a Casa do Amor na casa do medo.

A voz suave que confere identidade e sobrevivência espiritual

Constantemente vemo-nos distantes desse ponto de convergência para o encontro com Deus. É justamente em “casa”, o centro do meu ser, o lugar em que posso ouvir tudo de que necessito para a sobrevivência espiritual: “Você é meu filho amado; sobre você ponho todo o meu carinho”. Essa é a voz de alguém quebrantado, que só pode ser ouvido por aqueles que se deixam ser tocados.
Quando ouvimos essa voz que não quer se impor nem fica disputando atenção, mas, antes, é suave, gentil e fala conosco nos lugares mais escondidos do nosso ser, temos a certeza de que estamos em casa e nada temos a temer. Posso andar pelo vale tenebroso e nada temer; posso interpelar, consolar, admoestar e encorajar sem medo de ser rejeitado ou necessidade de afirmação; posso sofrer perseguição sem desejo de vingança e receber cumprimentos e elogios sem precisar usá-los como prova de minha bondade. Como amado, posso ser torturado e morto sem duvidar que o amor dele é mais forte do que a morte.
Sentir o toque das mãos bendizentes de Deus e ouvir a voz nos chamando de amados são a mesma coisa. Isso ficou claro para o profeta Elias. Elias estava no monte esperando encontrar o Senhor. Veio primeiro um furacão, mas Deus não estava naquele vento. Depois do vento, a terra tremeu, mas o Senhor não estava naquele tremor. Seguiu-se um fogo, mas também o Senhor não estava no fogo. Finalmente, veio alguma coisa muito suave, uns diriam que seria uma brisa ligeira, outros, um murmúrio. Tendo Elias ouvido isto, cobriu o rosto com o manto porque sabia que Deus estava presente. Na sua doçura, a voz era o toque e o toque era a voz (Cf. 1 Rs 19.11-13).

Outras vozes que afastam de casa

Por que deixaria eu o lugar onde posso ouvir tudo de que preciso? Há inúmeras outras vozes sedutoras, algumas em tom bem alto, cheias de promessas atraentes. Dizem: “Vá e mostre que você vale alguma coisa”.
Jesus, depois de ouvir a voz chamando-o de AMADO, foi conduzido ao deserto para ouvir outros apelos: “Se você for bem-sucedido, popular e poderoso, será também querido.” O diabo questiona a raiz de nossa vocação: “Se tu és Filho de Deus… transforma… pula… prostra…” Tais vozes estão sempre presentes e nos atingem nos pontos em que questionamos nosso valor e colocamos em dúvida nosso merecimento. Sugere que não seremos amados senão através de trabalho árduo e muito esforço. Espera que prove a outros e a mim que mereço ser amado.
Deixo o lar quando vou atrás dessas vozes. Esqueço a voz do primeiro amor incondicional e me deixo conduzir por outros apelos ao “país distante”.
Quase a partir do momento em que tivemos ouvidos para ouvir, esses chamados ficaram conosco. Vieram-nos através dos pais, cônjuges, professores, amigos, terapeutas. São manifestações humanas de um amor divino ilimitado. Desde que eu fique em contato com a Voz que me chama de Amado, tais conselhos são inofensivos. No entanto, se esqueço a voz do primeiro amor incondicional, daquele que me amou primeiro (1 Jo 4.19), então tais vozes conduzem-me ao “país distante”.
Esse segundo amor, ou seja, afirmação, afeição, simpatia, incentivo e apoio freqüentemente nos deixa inseguros, frustrados, confusos. Não é difícil saber quando isso está acontecendo: raiva, ressentimento, ciúme, desejo de vingança, ganância, luxúria, rivalidades são sinais inconfundíveis de que saí de casa. Tenho tanto medo de não ser amado, de ser culpado, posto de lado, superado, ignorado, perseguido e morto que fico criando estratégias para me defender e garantir o amor que acho que preciso e mereço. Assim, distancio-me da casa do Pai e escolho habitar num país distante, permanecendo surdo à voz do seu amor. Quanto mais longe do lugar onde Deus escolheu fazer sua morada, menos condições eu tenho de escutar a sua voz e menos acredito que há um Deus me esperando.

De uma vida absurda para uma vida obediente

A propósito, quando deixamos de ouvir a Deus, nossas vidas se tornam um absurdo. Na palavra absurdo, encontramos a palavra latina surdus, que significa surdo. Envolvidos por tanto barulho interior e exterior, fica realmente difícil ouvir a voz de Deus quando nos está falando. A vida espiritual requer disciplina porque precisamos aprender a ouvir a Deus, que constantemente fala, mas a quem raramente ouvimos. Porém, quando aprendemos a ouvir, nossas vidas se tornam vidas obedientes. A palavra obediente vem da palavra latina obaudire, que significa ouvir. É necessário ter disciplina e nos mantermos em casa se quisermos mudar lentamente de uma vida absurda para uma vida obediente, de uma vida cheia de preocupações, agitada para uma vida em que há espaço livre no nosso interior para ouvir nosso Deus e seguir sua orientação.
A vida de Jesus foi uma vida de obediência. Estava sempre escutando o Pai, sempre atento à sua voz, sempre alerta às suas direções. Jesus era todo “ouvidos”. Isto é a verdadeira oração: ser todo ouvidos para Deus. O cerne de toda oração é realmente ouvir, permanecer obedientemente na presença de Deus.
A partir dessa disciplina, a da oração contemplativa, e a partir dos recantos mais secretos do nosso ser – a morada de Deus -, podemos aprender a ouvir a voz do amor, vez após vez, e a encontrar lá a sabedoria e a coragem para tratar quaisquer questões que aparecerem. Conseguiremos, assim, criar um pouco de espaço interior e exterior em nossas vidas nos quais esta obediência a Deus pode ser praticada, impedindo que o mundo preencha nossas vidas de tal forma que não haja mais lugar para ouvir. Esse tipo de oração nos liberta para orar, ou melhor dizendo, libera o Espírito de Deus para orar em nós, enquanto nos mantém em casa, fundamentados e seguros, e aprofunda em nós o conhecimento de que já somos livres, de que já encontramos um lugar para habitar, de que já pertencemos a Deus, ainda que tudo e todos ao nosso redor estejam dizendo o contrário.
Adaptado de: (“A volta do filho pródigo”; “Espaço para Deus”; “O perfil do líder cristão no século XXI”).

por Henri J. M. Nouwen
Impacto/Padom

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